O lugar da experiência e a ética na clínica

No post anterior, falamos sobre a experiência em psicanálise. Pois bem, trata-se de pensá-la de um modo um tanto mais complexo, que coloque em jogo a dimensão valorativa incontornável que entra em cena quando pensamos a ação na sociedade – e nos limites que o desejo encontra na relação com os outros -, bem como a dimensão ética que não pode ser resumida em uma operatória formal da lógica do significante. Advertimos, anteriormente, que a experiência de que se tratava não podia ser confundida com um mero empirismo, mas deveria ser pensada a partir de algumas balizas que nos auxiliassem a ampliar o espectro de questões dentro da condução de uma análise.

Parece-nos essencial assinalar duas dessas balizas: a dimensão do desejo que a ética da psicanálise sempre convoca, bem como a dimensão valorativa que ultrapassa sensivelmente qualquer apelo miraculoso ao formalismo. Basta pensarmos em algumas máximas lacanianas que, retiradas de um pensamento mais rigoroso sobre a dimensão valorativa e ética que elas colocam em jogo, podem produzir resultados perniciosos. Pensemos, por exemplo, na máxima “agir conforme seu desejo” ou na sua forma mais lacônica “não ceder diante do seu desejo”. Ora, caso não consigamos pensar o desejo fora dessa acepção puramente formal – que retira as contradições do desejo em relação ao Outro – utilizamos essa fórmula ora como um hápax superegoico do analista diante do seu analisando (“não ceda!”), ora como um ensimesmamento do desejo – e do sujeito – como uma essência particular que independe das articulações e contradições das ações que efetuamos no mundo (a única culpa que o sujeito sente é de ter cedido diante do desejo).

A questão da ética sempre versou sobre o problema dos conteúdos. Se, em Ética a Nicômaco, o problema com o qual se depara Aristóteles no que se refere à condução das condutas é a insuficiência de darmos uma fórmula geral para casos particulares, a saída formal adotada posteriormente (pensemos no imperativo categórico de Kant) não nos deixa em um paraíso que também não seja perdido, vide Kant com Sade, de Lacan. Ora, se para fundar uma ética moderna basta um apelo à forma da ação enquanto tal, posso colocar qualquer conteúdo, elevá-lo à função de lei universal, e daí teremos um respeito rigoroso à forma em 120 dias de Sodoma. O que nos parece evidentemente escandaloso não são as descrições escatológicas de Sade, mas o respeito à fórmula enquanto tal, o que escancara o problema de uma dimensão puramente formal para a regulação de nossas ações.

Nesse sentido, resgatar a noção de experiência numa análise desde a égide da ética e da dimensão valorativa conduz a questionamentos mais amplos tanto sobre os efeitos que certas máximas podem ter no decorrer de um tratamento, como a lei do Juízo Final do desejo, quanto sobre os limites de atuar desde uma lógica puramente operatória. Lacan não parecia estar desavisado disso, pois, junto com seu esforço formalizador – que acompanha inegavelmente toda a sua obra – sempre houve um aceno ao limite da formalização. Pensemos no seu longo debate sobre o desejo, que lança mão do grafo como organizador conceitual, nos seminários 5 e 6, mas não consegue senão esbarrar no problema que vai além dessa pura formalização, como o problema da ética no seminário 7. 

Nesse sentido, quando falamos da experiência em psicanálise, temos em vista essa dimensão que parece sempre ficar de fora da fórmula. Questões como “como que isso fica no grafo?” ou “onde está o desejo nisso que o paciente me disse?” podem se relacionar ao sentido de nossa ação, mas não conseguem dar conta de tudo, vide a insistência da questão que parece mais apontar para os limites do grafo do que para um desejo nosso de sua completude. Isso não significa retirar a importância dos conceitos e da fórmula, nem diminuir a necessidade de um esforço teórico rigoroso. Trata-se de apontar a complexidade normativa em jogo. Parece-nos, portanto, que o questionamento sobre a ética demonstra justamente a insuficiência da pura operação formal do significante, uma vez que S1 e S2, ainda que produzam um sujeito barrado em sua hiância, não são as expressões finalizadas da língua dos anjos encarnada em nossas vidas, mas estão indelevelmente marcadas pelas contradições veiculadas nas experiências reais advindas de nossas relações com o Outro e com os outros.

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