O engodo mercadológico na formação em Psicanálise

Enfrentar as dificuldades na formação de analistas hoje é ter que dar conta de uma enormidade de pequenos problemas que podem simplesmente passar despercebidos. Um deles diz respeito à maneira pela qual as dinâmicas de mercado se naturalizam nas instituições. Depois do que vivemos na pandemia, ao que parece, nos acostumamos a trabalhar e a nos reunir, principalmente, de forma remota. O regime de excepcionalidade que experienciamos nos trouxe o terror das mortes pela covid e do descaso de nosso governo, mas, além disso, trouxe uma exigência muito imediata àqueles que trabalham com o contato direto com outras pessoas. Foi preciso nos adaptarmos à realidade virtual para seguirmos mantendo nossos atendimentos e nossos estudos. Um boom de lives, cursos, grupos e coletivos se formaram, favorecidos pela aparente quebra das fronteiras regionais. Esse, por exemplo, foi o nosso caso.

Mas para além desse ponto é preciso saber identificar a solidificação de um tipo específico de relação. Vê-se amadurecido, também na psicanálise, a figura do cliente, ou ainda, do consumidor. Esse tipo de postura diz respeito àqueles que, dentre um rol de alternativas nas prateleiras do mercado de cursos e palestras, acabam por escolher algumas dentre as opções que lhes melhor apetecem. Há, portanto, uma postura generalizada de consumo. Isso se especifica numa exigência cada vez mais pungente de melhor conteúdo, que dê atenção aos devidos assuntos da onda, sem que se estabeleça uma balança de pesos e contrapesos. Ao analista que consome o conteúdo disponível, fica a tarefa de reivindicar um melhor produto, que sirva melhor as especificações da demanda sem que, com isso, haja qualquer espécie de comprometimento no processo. E aqui estamos falando de um problema que ainda vai dar muito trabalho. Se pensarmos em um projeto formativo sério, é preciso não abrir mão do fato de que ele só se dá de forma presencial. Leia-se aqui a presença no seu sentido vivo e ativo, uma pessoa pode estar a quilômetros de distância e ainda assim, pela tela do seu computador, fazer-se presente numa discussão sobre os rumos do nosso campo.

Sabemos bem dessa nova modalidade de estabelecer relações e do seu aparente esgotamento que se reflete em cansaço virtual, mas não poderíamos deixar de notar outros efeitos da conjuntura: nos desacostumamos com a contenda diária de deslocamento pras salas de reuniões e pros consultórios, bem como muitas vezes estamos muito confortáveis com a conveniência que é simplesmente estar em uma sala de zoom com a câmera fechada.
Tudo isso deve ser levado em conta em nossa classe. Entretanto, cabe repensar o formato de nossas associações em função dessa massiva estabilidade do jogo de consumo-produtividade. Reforçando nosso ponto: a formação, o aprendizado coletivo esperado de nossa disciplina, demanda engajamento. Lacan estava consciente dessa importância, pois já na primeira lição do Seminário 1 é possível encontrá-lo dizendo coisas como:

“Se vocês não vêm para colocar em causa toda a sua atividade, não vejo por que estão aqui. Os que não sentiriam o sentido desta tarefa, porque permaneceriam ligados a nós, ao invés de se juntarem a uma forma qualquer de burocracia?” (p.16).

Ou seja, estar em um processo de formação é rejeitar a posição de mero espectador, ou se quiserem, de consumidor. É poder colocar algo de si na construção de um saber coletivo e fazer-se importante para o processo e resultados dessa empreitada.
Na República sugerimos sempre a apresentação de pesquisas individuais que tenham consequências para o andamento da pesquisa coletiva do grupo. Em termos mais gerais, pensamos que só há produção de um progresso nesse campo formativo se houver troca de saber, comprometimento com a apresentação de um pensamento para que passe pelo crivo da crítica. Só é possível a construção de um saber transformador por meio da interação. Esse devia ser o mote de uma instituição que vá além dos preconceitos propagados pelo lacanismo que teme coletividades.

No entanto, para atingirmos tal objetivo precisamos nos desfazer da herança naturalizada da lógica neoliberal que habita os espaços de formação. As instituições de ensino de maneira geral, vale lembrar, já encontram-se muitas vezes comprometidas com essa lógica. Tudo se passa como se o conhecimento fosse uma mercadoria, o aluno como cliente, e o professor como empregado. Nesse cenário, não é incomum encontrarmos em instituições privadas (não só) sistemas de avaliação por parte dos alunos, que incidem sobre, pasmem, a postura e não só a transmissão do saber pelos professores. Além de mal remunerados, como sabemos, são impelidos a assumir uma postura neutra, sem poder se comprometer com temas espinhosos e a reflexão crítica do sistema vigente. Será esse o futuro das nossas formações?

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